A literatura profunda de Clarice Lispector (1920-1977)  sempre me nocauteou com a sua linguagem, ela  corta as barreiras da língua, subverte todas as lógicas e não abre brechas  para o lugar comum. Ao ousar decifrá-la, (re)cito uma passagem do livro que marcou a minha juventude, “A paixão segundo G.H”, adotada como um  mantra ( pessoal ), prévia na hora de  enfrentar desafios:

E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes havia se tornado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a “verdade”fosse aquilo que posso entender – terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho. A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender.” LISPECTOR, Clarice,“A Paixão Segundo G.H., 1964: p.83

Descobrir  o potencial criativo do erro, talvez tenha sido  um dos  caminhos  para entrar no seu universo simbólico e atemporal,  na poesia contida em seus porões. Cheguei  “Perto do Coração Selvagem”,  prossegui como  um córrego em sua torrente de “Água Viva”, mergulhei na possível aventura de “Uma aprendizagem ou o LIvro dos Prazeres”, na  longa  viagem ao mais profundo de si mesma… Ao tentar ultrapassar a correnteza, estarreci com o alerta  das primeiras páginas:

“(…) E era bom. “Não entender” era tão vasto que ultrapassava qualquer entender — entender eEste livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim.Humildemente tentei escrevê-lo.Eu sou mais forte do que eu”

Entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.

(…) Compreender era sempre um erro — preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana.

(…) Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade.”

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.”  LISPECTOR, Clarice, “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969: p.5-22-50-13

Com as dúvidas existenciais da professora primária, Lóri,  apaixonada pelo professor de filosofia  Ulisses, pude  compreender  a dimensão educadora de sua obra. Com uma  didática às avessas,( sabedoria que aceita não entender nada) Lóri vai ensinando a Ulisses que ele também não sabe tudo.

É  nesse monólogo multiforme  de frases dadas ao texto ( lembretes, anotações), na angústia inquietante, que Clarice reflete sobre vida e os sonhos de uma forma fora de qualquer padrão. Às vezes,  a paródia de si mesma  é a sua melhor auto-definição: distante, sofrida, visionária, intuitiva, enigmática, angustiada, dramática. Clarices…quantas?

Assim  o  seu estilo vai sendo tecido, a  maneira muito particular de  elaborar a linguagem: o uso de   metáforas e imagens inusitadas, a quebra da relação de causa e efeito, o uso da ambigüidade, o fluxo da consciência. A palavra torna-se, portanto,  o eixo formal e temático de sua ficção, aproximando-se cada vez mais de outras artes , da música,  da pintura e do próprio silêncio como forma de comunicação.

A palavra é o meu domínio sobre o mundo.” In  “A Descoberta Do Mundo” 1984, p.94

“E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando, sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última.” In “Agua Viva”, 1978, pag.11

“Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de… de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse “estilo” (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em “humildade” refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.” In “A Descoberta do Mundo”, 1984, p.256

Muitos são os aportes críticos e os estudiosos da sua narrativa,  no Brasil, Estados Unidos e Europa, abrindo  caminhos para a compreensão de sua escrita, de novas   leituras  ou a formação de novos leitores. É possivel identificar   nas entrelinhas de sua escritura, na leitura do sentido ou dos sentidos,  na interlocução ( autor, leitores e personagens), indícios de que a  experiência estética da leitura se constitui e se manifesta em qualquer meio social.

Também são marcas da leitura de seus textos, as  reações e relatos dos leitores.   No contato que manteve com seus admiradores, os “leitores comuns” ou  os “de alma já formada”, Clarice não perde a oportunidade de  descrever  os seus papéis, ora textualizados nas advertências aos livros  de contos e romances, ora nos textos das crônicas, cartas e  entrevistas:

“A possíveis leitores:

Este livro é como um livro qualquer.Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação,do que quer que seja,se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar.Aquelas pessoas que,só elas,entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim,por exemplo,o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil. mas chama-se alegria.”In “A Paixão segundo GH, 1964, p.2

Se para Clarice, a  literatura é  um exercício sofrido e inexplicável, para nós  leitores, o exercício  imposto é o de  atravessar as fronteiras que o seu texto mediatiza e  nos afirmar   na impossibilidade de esgotar a sua  totalidade. Nessa travessia, o legado da verdade artística será sempre um duelo latente em cada olhar.

PS: Obrigada à Revista Contexto Educação- Edição 11  pela oportunidade de participar do cotidiano da sala de aula.

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