Lembro-me de uma reflexão feita por Pe. Bernardino Luz numa das missas dominicais sobre o mistério da Santíssima Trindade. Enfático e solene, ele fez a síntese do seu sermão com um xeque mate: “Ou o homem aceita o mistério, ou o absurdo.” Adolescente na época, vivi uma noite de pesadelos espirituais, medo de pecar por não compreender o mistério, e menos ainda, o absurdo. As indagações religiosas feitas no âmbito familiar também não aliviaram minhas inquietações juvenis. Meu pai, católico convicto, sempre encerrava as polêmicas com suprema autoridade: “não se discute as coisas de Deus, o mundo precisa de orações, é preciso rezar.”
Aluna salesiana, convivi com os rituais da oração do jardim da infância ao magistério, e não eram poucos, sempre que participava dos retiros espirituais voltava o mistério, medo de abrir o coração para não ouvir o “chamado”, uma espécie de convite para ser freira ou padre. Mais pecados e mais confissões. Rezar de verdade mesmo, só quando lia “Poemas para rezar” do padre francês Michel Quoist.
Ah! tinha ainda o sonho de ser anjo no cortejo das procissões, mas esse era um desejo frustrado, uma performance destinada somente às meninas loiras.Um desejo vingado e sublimado quando deparei- me com o Cristo negro do “Auto da Compadecida”, peça teatral de Ariano Suassuna.
Com o passar dos anos, uma racionalidade cética apoderou-se de outros caminhos, de outras leituras, buscando compreender o mistério fincado na memória do tempo, das referências e dos valores recebidos. Outros silêncios, outras vozes:
“No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, de nossas obras” pregava Vieira. “Ser o que se é, eis o que a vida nos propõe. Omitir-se desse desafio, ainda que em troca de fama e fortuna, ter e poder, é antecipar a morte e distanciar-se da mais feliz experiência humana, a de entrar no céu antes de morrer, pela porta da oração e, sobretudo, da ação amorosa que engendra vida. Isso é um dom divino, uma tarefa política e uma experiência mística,” afirma Frei Beto.
À medida que envelheço e me aproximo mais do fim de todos os mistérios, sinto-me redimida quando consigo praticar, além das aparências, o evangelho, refaço-me na graça de renascer a cada dia. Lidar com os ritos de passagem, inevitáveis ao longo da vida, me fez compreender o sentido desse tempo litúrgico que precede a Páscoa. Morrer para Nascer: eis o paradoxo da fé.
Essa é a Páscoa, passagem da esperança, livre de qualquer destino, qualquer arbítrio, qualquer escravidão.Travessia e mistério proclamados na crença da Ressurreição.
FELIZ PÁSCOA!