O livro é uma delícia! Lindo, poético, cheio de fotos e lembranças familiares. Li saboreando a mescla de sabores das culturas negra, indígena e portuguesa, sentindo o cheiro da comida cotidiana guardada nas lembranças afetivas de Mabel Veloso. Em volta da mesa, D. Canô, uma matriarca à moda antiga, ocupa o lugar onde ela sempre expressou a essência de amor pela qual é lembrada, ensinando técnicas e rituais . “Mãe, e o sal? ” Sábia, vem a resposta temperada: “Ah! Meu filho, o sal é um dom.” Daí, o título do livro e outras conclusões: na culinária, assim como na vida, conta muito a experiência de quem cozinha, a intuição usada na hora do saber fazer, a alquimia dos pequenos segredos.

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“Fomos, somos abençoados, nós, filhos de Mãe Canô e Pai Zeca, acolhido nessa mesa, nesse beijo, nesses sabores. Nossa Senhora da Purificação abençoando a alegria no sereno do Recôncavo baiano. Todo dia boa comida! Aprendemos aí, todos os gostos, paladares, prazeres para toda vida.” – Maria Bethânia”.

Nas entrelinhas de cada receita uma volta ao núcleo familiar de nossas mães e avós, época em que as famílias eram grandes e todas comiam em casa. Nessas receitas escritas à mão, alguns recortes da memória culinária: a caligrafia, o português arcaico, a classe social, a tradição oral, o gosto dos clãs, segredos guardados a sete chaves. Um patrimônio que aporta na sociologia e antropologia com raízes e ingredientes.
Há um gosto todo especial em fazer preparar um pudim ou um bolo por uma receita velha de avó. Sentir que o doce cujo sabor alegra o menino ou a moça de hoje já alegrou o paladar da dindinha morta que apenas se conhece de algum retrato pálido mas que foi também menina, moça e alegre. Que é um doce de pedigree, e não um doce improvisado ou imitado dos estrangeiros.Que tem história. Que tem passado. Que já é profundamente nosso. Profundamente brasileiro.Gostado, saboreado, consagrado por várias gerações brasileiras. Amaciado pelo paladar dos nossos avós.” Gilberto Freyre

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Faz sentido. Foi através desses caderninhos que a mulher deu início à conquista do território da escrita (antes, ofício de homem) em meio a receitas e gastos domésticos. Neles, outras anotações também passaram a ser registradas: pensamentos, lembranças, segredos, afetos, ensaiando os primeiros passos na caminhada do soltar o verbo.
Hoje, a vida moderna é prática, basta acessar a internet e imprimir a receita mais fácil, com direito a passo a  passo, vídeos e tutoriais, porém, ao lado do computador, algum caderninho guardará  os sabores da comida de D. Canô, de nossas mães e avós.

P.S. Tharcísio, obrigada pelo livro e a linda dedicatória. Incentivou-me a refletir mais sobre essa cozinha emocional. Bjs.
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