Depois de assistir ao filme “Cemitério da Memória,” documentário de Marcos Pimentel, esbarrei  numa constatação: sou memorialista, sem dúvida alguma. Faço parte desse time de curiosos que vivem  fuçando  o passado, ou simplesmente vivencio a oportunidade de “um ajuste de contas do eu com o eu” como afirma o escritor Pedro Nava.
O Ontem, Hoje e Amanhã, roteiro do curta, serviu de pretexto para trazer à tona a turma de Magistério do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, no ano de 1968. Com ela,  um  passado que insiste em recapitular a memória dos fatos, enquanto a tecnologia reacende no amarelado das fotos, o brilho e afã de nossa juventude.
1968, um ano mais que emblemático,  intrigante e provocador. Muitos são os adjetivos e as formas de interpretá-lo ao longo do tempo: ano louco, radical, rebelde, revolucionário, utópico, mítico, profético, das ilusões perdidas… E como se não bastasse, bissexto.
Nesse curto espaço de tempo de 366 dias, o caminho que percorríamos até a escola parecia ligeiramente curto nas conversas que nos uniam: os Beatles, os festivais da canção, os namoros e paqueras, as paixões platônicas, os diários e cadernos de recordações…Pátio, praça, salas de aula, eram os cenários onde o mundo desfilava aos nossos olhos  através das revistas Manchete e o Cruzeiro, dos jornais O Pharol e o Sertão, das aulas de História de Irmã Margarida Falcão e das canções vetadas pela censura.
Mesmo sem compreendermos a dimensão de um mundo dividido em blocos, nem a lógica de uma Guerra Fria, um sentimento nos irmanava quando ouvíamos os versos: Era um garoto que como eu/Amava os Beatles e os Rolling Stones/Girava o mundo, mas acabou/Fazendo a guerra no Vietnã…Era fácil mergulhar nas letras das canções para assimilar o momento histórico no qual vivíamos ou dissecar a realidade brasileira através da ficção de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, nas saudosas aulas de Irmã Adelita.
Lembro-me  do  espanto da  Diretora do colégio no dia em que elas ( Irmã  Adelita  e Irmã    Margarida) mobilizaram uma passeata ao redor da Praça Maria Auxiliadora em homenagem ao estudante secundarista Édson Luís, morto no dia 28 de março, vítima da repressão policial no Rio de Janeiro, fato que causou forte comoção pública, levando mais de 50 mil pessoas ao enterro do estudante.
Todas em silêncio! Essa  era a ordem  dada pelo comando na ida e na  volta da passeata. Silêncio ou Voz? Ainda hoje tenho dúvidas sobre  o pacto feito pelas duas mestras para conseguir o aval da diretora. Mas de uma coisa tenho certeza, abstrai daquele silêncio mortal, o poder e a organização das minorias. Aquela foi uma grande aula a céu aberto!
Aulas também repetidas nas inúmeras mobilizações formadas por jovens estudantes em todo Brasil, cujo protagonismo resultou em um movimento de contracultura que questionava a moral vigente através da arte, da música e do cinema. Unidos, lutavam contra a feroz repressão do governo  militar e pelo fim de uma ditadura cruel e despótica.
Foi nesse cenário político, tenso e conturbado que concluímos o curso de Magistério.
Segundo nossos pais, estávamos diplomadas, aptas para o exercício do lar e da profissão. Nem tanto. Outras vozes já nos alertavam para o espírito de luta por igualdade de direitos. Uma delas,  a da escritora e jornalista Carmem da Silva, que marcou passagem no movimento feminista brasileiro com  coragem e pioneirismo. Na  coluna “A Arte de Ser Mulher” da Revista Cláudia, ela incentivou mulheres a trabalharem, falou sobre divórcio, sexo, filhos e a importância do protagonismo feminino, em uma época em que temas como esses não eram discutidos abertamente.
A revista tornou-se o meu manual de contravenção. Nela aprendi a cozinhar testando o maravilhoso suplemento de receitas, prenda  super  aceita  nos ditames do “lar doce lar,” enquanto passava a limpo o domínio patriarcal nos artigos escritos sobre Simone de Beauvoir no seu polêmico livro O Segundo Sexo, obra inclusa na lista negra do Vaticano. Foi nesse paradoxo, que assinei  identidade e corpo para minha própria voz.
Nesse meio século, a voz de Carmen e de outras tantas, continuam vivas, reverberam em nossas conquistas e reivindicações, antigas e atuais. As bandeiras feministas alargaram-se, não só no espírito de luta por igualdade, mas em denunciar uma sociedade opressora e injusta com as minorias.
A herança de 1968 é manchete nos dias de hoje, nas reivindicações e manifestações sociais, políticas e culturais que ainda continuam sem solução… Ao contrário de nossas lembranças, que sobrevivem plenas, sem cobranças ou rótulos.Entre avanços e retrocessos aqui nos reencontramos, exercendo apenas a militância de Ser e Viver, renovadas em afetos e   gratidão. Parece que foi ontem, mas já se passaram cinquenta anos!

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