As flores, o sol e os pássaros já anunciam a sua presença, é primavera.Tudo certinho e bem demarcado no calendário das estações. A surpresa fica por conta das flores de Clarice Lispector, colhidas no seu “Água Viva”, livro dessa poderosa autora. Ela dá personalidade às flores, nos aproxima de nossa própria natureza e promove espontaneamente nossa identificação. No seu jardim, a questão feminina, a linguagem cortante e esse dramático recado: “Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.”
A seta facilitou o caminho.Apossei-me do catálogo e escolhi esse buquê:

“Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas têm gosto bom na boca – é só experimentar. Mas rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz de Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas. As amarelas são de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.”

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é. Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume. Violetas diz levezas que não se podem dizer.

A sempre-viva é sempre morta. Sua secura tende à eternidade. O nome em grego quer dizer: sol de ouro.

A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele. Só tem uma camada de pétalas. O centro é uma brincadeira infantil.


Tulipa só é tulipa na Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto para ser.

Mas angélica é perigosa. Tem perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a hóstia. Muitos têm vontade de comê-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.

O jasmim é dos namorados. Dá vontade de pôr reticências agora. Eles andam de mãos dadas, balançando os braços e se dão beijos suaves ao quase som odorante do jasmim.

Estrelícia é masculina por excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo e o seu canto. Só que não espera pela aurora. A violência de tua beleza.

Quanto à suculenta flor de cactus, é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.

Gerânio é flor de canteiro de janela. Encontra-se em São Paulo, no bairro de Grajaú e na Suíça.

O crisântemo é de alegria profunda. Fala através da cor e do despenteado. É flor que descabeladamente controla a própria selvageria.”
Clarice Lispector In: Água viva p.67-72

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